sem você. eu sou nada.

hela santana
4 min readApr 9, 2024

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Photo by Tom Chen on Unsplash

Quando olhei pro relógio do celular, já passava das dezenove horas. Algumas notificações de whatsapp e instagram apareceram na tela, as arrastei pra um lado da tela e ignorei, como sempre faço, antes de me arrastar pro outro lado da cama e cair.

— cadê você? já vai começar.

Eu sabia disso já. A essa altura do campeonato, atraso podia muito bem ser meu sobrenome. Mas também sabia que hoje especialmente eu não poderia me atrasar. Mas nada importa pra mim. Um fio de luz escura entrava por um vão da janela mal fechada. Fui até ali, dei uma espiadinha. Uma música começou a tocar sozinha na tv da sala. Não me importava mais o absurdo também. Encostei meu rosto no vão da janela. Poderia abri-la ou fechar de vez, mas preferi ficar assim, decifrando escondida o vazio da rua como se me escondesse de algo lá fora. E, lá fora, algo me espiou também. Uma Sombra, toda de preto e olhos eclipsados. Suja e libertina. Ela tragou um cigarro e foi embora, como quem diz “eu sei que você me viu”.

— já tá todo mundo aqui.

Outra mensagem. Por favor, parem. Fecho de vez a janela e vou pro banho. Nada interessante aconteceu ali. Era só agua quente caindo sobre um corpo que eu não queria. Me fechei ali dentro, sufocando no vapor quente, e a música se fechou sozinha lá fora.

— vai começar.

Li a mensagem já dentro de um uber. Eu sei disso. Eu sabia. Eu sempre me atraso. Sou um atraso. Eu sei.

Vermelho. Vermelho é alerta.

Sinal vermelho.

O motorista parou para alguns pedestres passarem em filinha. Meu celular vibrou, mas ao mesmo tempo uma outra dupla de sombras lá fora chamou minha atenção. Take the plan, canta a música no meu ouvido, Spin it sideways. Dessa vez as sombras tinham um rosto. Um era seu. O outro não era o meu. Riam, lado a lado, como estranhos íntimos e recém apresentados. O sinal abriu, e os olhos eclipsados das duas sombras se cruzaram. I fall. E os lábios se beijaram. Um beijo rápido pro mundo ao redor, mas lento para nós três.

— já tão no palco, cadê você?

Eu estava na entrada. O show já tinha começado mesmo. E uma chuva torrencial caía. Não na rua, não do céu, mas de dentro de mim. As pessoas me encaravam enojadas, enquanto a água inundava o espaço todo.

— esse tênis era novo, sabia?

Disse alguém, quando a água chegou nos seus pés. E eu me envergonhei, trancada no box do banheiro, por deixar meu choro molhar todo mundo ao meu redor. Lá de dentro eu já conseguia ouvir o Placebo cantar. Cantavam minha música favorita. Mais uma mensagem no celular. Era sua.

Não li.

Me levantei do chão gelado enquanto a guitarra cantava. Lembra que eu amava guitarras? Nunca mais amei nada.

Senti uma, duas, três, quatro mãos frias se fecharem em volta do meu pescoço. Apertando forte, rasgando a minha pele, me puxando pela goela lá pra fora. Toda lágrima que derramei no chão já tinha secado. Ninguém se importava mais com o dilúvio em mim. No palco, a Sombra que vi me tragar do lado de fora da minha casa cantava. Without you I’m nothing. E as mãos me puxaram até o palco. Without you I’m nothing. O eclipse nos olhos dela se apagou e agora era a Sombra que se tornava um dilúvio. E só então eu percebi que ela era exatamente igual a mim, até no corpo que eu odiava. Encostou a testa na minha, cheirando a fumaça molhada, e chorava.

Without you I’m nothing, cantou olhando nos meue olhos. E então, as mãos no meu pescoços me fizeram olhar para o meio da plateia. Lá estavam, você e sua nova sombra, se amando. E agora quem cantava era eu. Without you I’m nothing at all. Vocês pararam, olharam pra mim, sozinha no palco. Nua, comtudo que odeio a mostra. Riram. E então eu caí.

Quando abri os olhos, estava na minha cama.

Olhei para o relógio do celular, já passava das dezenove horas.

Algumas notificações de whatsapp e instagram apareceram na tela, as arrastei pra um lado e ignorei, como sempre faço, antes de me arrastar pro outro lado da cama e cair de cara no chão. Tudo era escuro, graças a janela totalmente fechada.

— não precisa vir mais.

Okay. Tá bom.

Ali no chão, eu voltei a dormir. Uma música começou a tocar sozinha no meio da sala e uma melancolia distorcida enfeitava a noite dentro de mim.

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