O poder do ranço

hela santana
5 min readMay 4, 2023

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Comecei a escrever por ranço.

Lá nos meados de décadas atrás, quando cursava a sexta série do fundamental na E.E Prof. Alice Antenor de Souza, interiorzinho de São Paulo, uma professora me disse após zerar uma redação minha que “eu jamais iria escrever bem”.

E como toda criança chegando na adolescência, minha única reação imediata foi a de qualquer criança chegando na adolescência: mandei ela a merda — mentalmente, claro, eu não era tão burra como ela sugeria. O choro, deixei pra quando voltasse pra casa e fosse tomar banho, como sempre fazia entre uma noite e outra pra não acumular o número de traumas não processados — humor.

Mas o choro dessa vez foi diferente. Eu não estava triste, eu estava com raiva. Uma coisinha humana com pouco mais de um metro e muito puta da vida, isso era eu. O que aquela mulher obviamente cis e branca disse me enfureceu tanto que eu chegava a ter pesadelos com aquela voz azeda gritando no meu ouvido: você nunca vai escrever bem.

“Prove que eles estão errados”
Photo by Brett Jordan on Unsplash

E foi assim que eu me forcei a gostar de livros. Comecei a frequentar a biblioteca abandonada da E.E Prof. Alice Antenor de Souza como pouquissimos, mas poucos mesmo, alunos faziam. Dom Casmurro, 1984, O Homem Nu, A Paixão Segundo GH, Menino Maluqinho, X-men, caiu no meu colo é peixe. Eu entendia metade dessas coisas? Claro que não sei dizer, mas não importava, eu só queria aprender a escrever a esfregar uma nota boa na cara daquela mulher.

Até dicionário eu comecei a ler no café da manhã. E foi quando comecei a rascunhar qualquer coisa aleatória do meu dia nas folhas não usadas de algum caderno velho. “Hoje fui comprar mão, tinha um homem bebado dormindo na rua”. “Passou um cara correndo aqui na frente hoje”. “Queria um vestido”. De linha em linha. Até que uma linha virava duas, e duas viram três.

O resultado? Minha nota melhorou o suficiente pra professora não ter como me reprovar e dois anos depois eu estava representando a escola em uma competição regional de redação, apenas para contrariar ela, a voz azeda que ficava nos meus ouvidos como um fantasma dizendo que eu nunca saberia escrever.

Finalmente vingada, eu agora podia dormir em paz com outros demônios. E nesse meio tempo, escrever tornou-se um hábito, que de vez em quando até compartilhava com alguma ou outra pessoa que apareciam no caminho oculto dos blogs e fakes da internet discada.

No ensino médio eu comecei a me apaixonar por cinema. Vi na mesma semana Central do Brasil e Mulholand Drive e algum clique ocorreu. Será que dá pra trabalhar com isso? Descobri que dava. Tinha um tal de roteiro que parecia ser o meio do caminho entre a única coisa que eu acreditava saber fazer — a escrita — e minha paixão recém descoberta, o audiovisual.

Mas a vida é uma merda, e mesmo começando faculdade tanto de Letras quanto de Cinema, ela agora não me deixou concluir nenhuma e o sonho morreu um pouco junto com a minha adolescência.

Segui como uma boa millennial escrevendo on line, criando um blog aqui e outro ali, ou teclando textão no Facebook, o que me fez conhecer muita gente massa.

Um dia recebi um convite da Jup do Bairro para escrever uma resenha sobre uma música que ela estava para lançar, e chorando digitei várias versões do texto que batizei de Eu sou um Zumbi, um texto que guardo com muito carinho, porque foi uma brisa emotiva de ácido redigido de um lugar muito sincero, já que veio de encontro com eu finalmente me avisando trans para o resto do mundo. Coincidentemente, esse texto começou um efeito dominó que me levou ao lugar onde estou hoje, porque graças também a ele, fui convidada para ser social media do agora já aclamado mundialmente Alice Júnior, o que me levou a conseguir um trampo na distribuidora do filme, onde fique por pouco mais de um ano.

Esse involuntário encontro temático entre as duas coisas que eu amava reacendeu aquele sonho antigo de trabalhar como roteirista, que a vida em seus tropeços havia apagado um pouco. Mas não dava. Eu mal conseguia comer, que dirá tentar voltar a estudar.

Até que em um desses eventos de lançamento pré-pandemia, em uma rodinha com diretores e outros realizadores audiovisuais, sempre cis, sempre todos brancos, enquanto eles conversavam sobre seus sucessos e próximas estreias, ninguém entre nós sequer vislumbrando o apocalipse a caminho, brinquei que “um dia os convidaria para um estreia minha também”. Os risos se calaram. Os copos não se moveram. E um silêncio constrangedor pairou palpável no ar. Me senti humilhada como não me sentia em muito tempo e, então, ele reapareceu.

O ranço.

O velho você nunca vai escrever bem quase 20 anos depois reaparecia em meus sonhos, agora em forma de silêncio estampado na cara de homens brancos segurando um sorrisinho no rosto como se dissessem você nunca vai estrear nada. Aquilo doeu menos do que me deu, de novo, raiva. Raiva essa que só foi aliviada quando, tempos depois, me deparei com uma exibição de Perifericu, curta de Vita Pereira, Rosa Caldeira e Nay Mendl que me fizeram chorar e amar o audiovisual de novo, de uma forma que eu nem sentia desde quando Central do Brasil e Mulholand Drive plantaram o amor por essa arte na minha vida.

Impulsionada por esses acontecimentos recentes, em 2020 me inscrevi e fui uma das selecionadas para participar do (na epoca chamado) LANANE — Laboratório de Narrativas Negras oferecido pela FLUP em parceria com a Rede Globo, onde desenvolvi meu primeiro texto totalmente audiovisual: um argumento de filme inspirada em uma história que vivi e em uma pessoa que só de pensar nela agora me dá… ranço.

Esse argumento foi muito bem aceito pelo pessoal de dramaturgia da Globo. Graças a ele, em 2021, eu tive meu primeiro trabalho de roteirista, numa série de animação criada pela Mariani Ferreira, que foi minha mentora no LANANE e hoje é minha amiga, e pela Gautier Lee, que hoje é minha amiga e irá dirigir meu primeiro projeto de documentário, Pajubá, que gravaremos agora em 2023. Também graças a esse argumento, fui convidada a participar de uma das famosas oficinas de autores da Globo, que eu só imaginava integrar nos meus mais loucos sonhos. E mais louco ainda, é que graças a esse argumento também fruto da dor transformada em ranço, eu agora posso dizer que fiz parte das salas de roteiros de dois dos maiores sucessos recentes da tv brasileira: a antologia Histórias imPossíveis e a deliciosa Encantado’s. Duas séries que me fizeram ser amiga de meme e fofoca de tanta gente que eu admirava e até estudava.

Hoje nenhum fantasma sussura mais no meu ouvido dizendo que eu nunca vou saber escrever. Já escrevi e sigo escrevendo. Hoje nenhum outro grupo de fantasma ri quando falo que vou um dia chamá-los pra estreia de algo que coloquei minha caneta — e já alcancei mais gente em dois anos de carreira, do que aqueles que seguram o riso torto ao olhar pra minha cara.

E tudo isso é muito louco, porque se aquela mulher, na sexta série, tivesse apenas me entregado aquela folha de papel sem falar nada pra me humilhar, eu talvez agora fosse qualquer outra coisa.

E sem querer, ela me deu a maior lição que poderia me dar: nunca duvide do poder de uma travesti com ranço.

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