A mediocridade em querer ser amada

hela santana
6 min readJul 18, 2022

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Photo by Velizar Ivanov on Unsplash

Tenho a mentira de dizer que só abro esse site para escrever sobre as coisas que finjo terem cicatrizado. No outro lado, meu trabalho é escrever. Contar, criar, narrar histórias. As vezes reais, as vezes só papel e outras eventuvalmente uma mentira verdadeira em alguma tela. E, também as vezes, eu preciso, para essas histórias, olhar para as coisas que eu finjo terem cicatrizados.

Como na vez que precisei aprender a ser romântica, para um texto que eu estava com terror. “Eu não sei falar de amor, porque do amor só ouvi falar”. Foda-se gata, é o seu trabalho. Se vira. E me revirei na cama até um buraco-de-minhoca se abrir no meu travesseiro na hora de dormir.

Era oitavo ano do fundamental. Tinha esse amigo e nosso grupo. “Vamos se ver sábado pra tomar um sorvete, alguma coisa”. Vamos. Fui. Todos riam quando cheguei, e eu não sabia encontrar o motivo da piada — eu era o motivo. “Aí voce aproveita e conhece minha namorada”. Todo mundo disse que ela era ótima, só eu não a conhecia. Cheguei e não tinha nada novo por ali. “Cadê sua gata?”. Gargalhadas. Era tudo uma mentira. Acharam divertido fingir que o galã do grupo tinha uma namorada, porque queriam apenas ver minha cara de ciúmes por ele. Eu nem era afim dele. Doeu. E fui pra casa. A noite uma das amigas me liga.

— Se você continuar dando em cima dele eu vou acabar com sua raça.

E em um milagre da vida, a energia do mundo caiu, a ligação ficou muda e eu só chorei no escuro da rua e do bairro. Essa foi minha primeira história de amor. Juro que superei.

Eu juro.

Juro também que conheci um leonino maravilhosos na universidade. Me encantou pedindo a azeitona do meu prato em um bar lá no centro de Foz do Iguaçu, que cena tosca. Disse gostar de mim tempos depois. Eu acho que eu também gosto de você. E no nosso primeiro beijo, primeiro dia, não conseguia dormir assustada com ele socando a parede em raiva. Foi uma história violenta que me custou muito caro e de brinde me levou pra caminhos ainda não desbravados da ansiedade, do pânico e da depressão. “Amiga sai dessa pelo amor de deus!”, me diziam quando me viam machucada, encolhida, acuada, em terror. Mas eu não conseguia. “Se não eu quem vai fazer você feliz?”, dizia ele enquanto me batia. “É verdade, mas dói”, eu já completamente domada sussurrava e me escondia. Um dos problemas de uma relação abusiva é que ela é como craque misturado com metanfetamina: uma dependência que você não controla. Eu só me controlava quando os amigos dele diziam sem nenhum pudor “É feia, mas pelo menos é sua né”. E ele odiava. Me odiava. Me amava. E essa foi minha primeira história de amor.

Mas quer saber, eu precisava reagir. A vida na universidade me lembrou que o mundo é política, talvez eu devesse me atualizar muito sobre mim, sobre o outro e sobre o mundo ao redor. Me aproximei com alegria de espaços e pessoas LGBTs na esperança de ver que o mundo não era tão cruel assim. E adiantou de porra nenhuma. Chega uma hora que você descobre que existem padrões no lado de fora dos padrões. “Cê é feia mas deve ter um pauzão, né. Quer ir lá pra casa?”. Que coisa horrorosa. Claro que quero! Pelo menos ia transar. Mas não transava. Uma vez ouvi: pessoa negra peluda desse jeito é estranho, rola não. Malditas pessoas brancas! “A questão é a raça, nega. O amor tem cor sim”, me disseram. Acreditei, porque é verdade. Padrões brancos racistas blá-blá-blá. No quilombo vai ser diferente.

Não foi. Chega uma hora que você descobre que existem padrões no lado de fora dos padrões. E tudo vira uma grande bola de neve preta. Eu também não era o bastante pro amor que não tinha cor e aí me vi no malabares das rejeições. “A questão é que cis é foda, gata!”.

É verdade. Talzes do lado de cá fique mais fácil. Mas não foi. Eu não sou preta o bastante, nem trans o bastante, ou magra o bastante, ou gente o bastante para o amor. Meus flertes com brancos eram pedido pra ser risada. Meus flertes com negros eram pedidos para ser problematizada. Minhas tentativas com corpos trans eram motivo para ser trocada por uma cis mais agradável, ou uma gata trans mais apresentável. Chega uma hora que você descobre que existem padrões no lado de fora dos padrões

“Escuta eu gosto de você, mas não posso me relacionar com ninguém agora”. O agora acabou ontem quando te vi com a cis que sai bonita no instagram. Estou rancorosa e você tá lendo porque quer. Eu só te chamei pra beber e você mandando textão que tá pensando na ex.

Oxe.

Mas pelo menos sou uma ótima amiga. Talvez o texto de amor do trabalho possa ser sobre isso. Mas não podia. Eu tinha que falar do amor. Que porra é amor? “A questão é que não é sobre raça ou gênero, gata, é sobre criar novas possibilidades de amor para corpos e corpas fora da normatividade”.

É verdade. Acreditei de novo. E vi que as novas possibilidades de amor não dizem respeito a gente feia, sem graça e desdentada.

“Quem sabe sendo uma boa amiga e uma boa profissional sei lá. Me amar talvez faço o outro me amar”. Acho que não.

— Amiga mas que amor é esse que você tanto sonha?

Não sei filhadaputa, me diz você. Estou perdendo o controle desse texto. A escaletada que fiz pra isso aqui já era. Mas percebi que sou uma ótima amiga, enquanto útil. Um contato importante para se pedir socorro. Talvez pedir um uber de emergência. Dividir o miojo. Ajudar na sua vakinha. O colo que você precisa quando leva um fora. A carência que você supre numa noite de sábado e depois vai embora. O ombro pro desabafo sobre o chifre que você deu ou levou. A forte desprendida de tudo. A bem sucedida presa em traumas da adolescência. A discreta que joga toda sua vida em um texto do medium. Eu odeio rejeição sabia? Sim sabia, mas também aquela que você vai parar na balada e falar estar em dúvida se fica com ele, com ela ou com elu.

— Pega geral, véi, sei lá.

— Ai amiga desculpa te encher com isso.

— Tô acostumada.

— Eu falo de uma lugar de privilégio eu sei, mas…

Mas nada. Esse texto maldito só me fez lembrar como eu vivo em busca de um eu te amo que nunca chega.

— Eu sou feia?, perguntei.

— Amiga eu vou no banheiro., ela respondeu.

Rejeitada pela família e pela igreja. Açoitada por todo e qualquer genero. Trocada até pela minha sombra no espelho.

— Não deu em nada de novo.

— Você merece o melhor, gata!

Como é que eu vou escrever sobre amor? Talvez não seja pra todo mundo mesmo. Talvez alguns corpos — o meu — simplesmente não vai saber o que é tudo isso e todas as possibilidades disso. Talvez eu seja bonita, mas não importa. Talvez eu me ame, mas não importa. Talvez eu seja bem sucedida profissionalmente, mas não importa. Talve eu te ame genuinamente, mas nao importa. Vai importar na conversa milituda de bar apenas, para fazer você se sentir melhor com a minha desgraça.

E por que é tão errado querer ser amada? Talvez eu queira sim viver 10 Coisas que odeio em Você. E também queira viver os textos que leio sobre tanta coisa longe disso.

“Mas e eu? Meu amor não conta?” Contou até você assumir outra e me procurar só pra cama quando tudo acabou. Estou com raiva. É melhor parar.

O que quero dizer é bem simples:

Há muita mediocridade em querer ser amada.

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