A CAIXINHA

hela santana
7 min readNov 3, 2023

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Photo by Zaeem Nawaz on Unsplash

Não tenho muitas lembranças da minha infância e com o passar dos anos, parece que a adolescência começa a desaparecer também. Na verdade, até a fase adulta tem ficado meio nebulosa, e eu sou tenho trinta e dois anos. As vezes tento entender a causa desse apagamento silencioso, mas que grita toda a noite na minha cabeça, só que não acho resposta. Isso tem sido muito tema de terapia, que sempre leva tudo pra uma conclusão muito dolorosa: traumas. Alguns dos quais eu também já esqueci, como defesa ou como, sei lá, qualquer outra coisa.

E é difícil também lidar com as memórias que nunca vão embora, porque las são sempre acompanhadas de coisas tão bobas, tão inocentes. Tão infantis e tão violentadas.

Como quando tinha por volta de cinco anos e minha falecida avó paterna me pegou brincando sozinha na sala da casa dela com a boneca de uma das minhas primas. Eu notei a presença dela só quando senti sua mão puxando minha orelha — oxi, tas doido? Isso é coisa de sua prima, não de menino. E a boneca foi tirada da minha mão. Não entendi até hoje o motivo daquilo. Era só uma criança brincando.

Não tenho muitas lembranças da minha avó, poucos anos depois minha mãe me levaria para morar no interior de São Paulo e a veria novamente muitas poucas vezes até ela falecer. E as únicas lembranças que tenho dela são da vitamina de banana que me fazia e do puxão na orelha — reviveria aquela sensação todas as vezes que me minha mãe ou tia me pegasse brincando com as roupas e jóias dela.

Também recordo no prézinho, dos coleguinhas rindo falando que eu era muito menininh e dos amigos da rua falando a mesma coisa, mas a gente ria. Brincadeira de criança. Um primo mais velho, cujo o rosto e o nome nem consigo recordar mais, fazia o mesmo, quando me encontrava. Nele isso doía um pouco mais. Não entendia nada. Era só uma criança.

Na adolescência, as lembranças não ajudam muito também. Tem uma cena em especial que nunca fugiu dos meus pesadelos. Certa vez, no recreio, ali pela quinta série do fundamental, estava sentada sozinha lanchando, quando recebi um empurrão de um outro colega. Não falei que ele tinha mão de menina?, lembro da voz de um deles falando enquanto ria. E aí seu grupinho, de meninos e meninas, começaram a me empurrar em rodinha, gritando que eu tinha mãozinhas de menina. Elas são pequenas mesmo. Gosto delas. Mas são só mãos. Por que diziam que era mão de menina? Não entendia nada. Eram só mãos e eu era só uma criança. Mas ríamos depois. Tinha alguma coisa pra entender?

Claro que não tinha.

Meus colegas de rua, que me protegiam como sendo o elo mais fraco, adoravam brincar dizendo que faziam isso porque eu era a amiguinha deles. E eles tinham que me proteger dos grupinhos das ruas rivais, se não pareceriam fracos. E um dia me defenderam mesmo, quando descobriram que um garoto da rua 28 me pegou sozinha na rua e me bateu porque eu era justamente isso — a menininha.

Pouco tempo depois, eu começaria a ser empurrada pra igreja. Tentaram me por na católica, mas não rolou. A batista até que deu certo. E a essa altura eu até já tinha mais amiguinhas também. Em uma dessas igrejas, era vista como prodígio. Vai ser missionário, o pastor falava. Eu tinha o dom da palavra. Acho que tenho mesmo, estudo muito por ele. Um dia falaram que eu devia ser levita e me colocaram no grupo de dança da igreja. O grupo onde só dançavam meninas — e eu, que não era menina.

Os irmãozinhos da igreja, que adoravam me convidar pra fugir do culto e ir pra casa de algum deles, gostavam de rir e falar que um dia eu ia ser missionária ou pastora — até porque, estava fazendo na igreja o que as irmãs faziam, mesmo sendo eu um irmão.

Não entendia nada, mas com o tempo isso me incomodou um pouco. Incomodou também o pastor, que ao saber que eu e os irmãozinhos estavamos praticando outro tipo de oração em línguas me expulsou do templo. E com a expulsão veio a semente da depressão e do isolamento, já que perdi todas as minhas irmãs e irmãos.

Mas eu daria a volta por cima. Na oitava série finalmente fiz meu grupo de amizades mundanas. Aceitei o pecado — e o emo. Magrinha, afeminada e rockeira. Já dava sinais de uma certa inteligência intelectual ali, apesar do pedantismo da primeira juventude. Meu grupinho mundano tinha seus galãs e suas princesinhas, mas eu era algo fora disso. Ali naquela selva nova o meu termo mudou. Já não me chamavam de menina, eu era só uma bichinha — ainda que minha primeira paixão tenha sido uma irmã cis lá da igreja. Ali também começaram os comentários de não basta ser viado, ainda é bichinha. E assim os anos foram passando. Eram só adolescentes brincando.

No ensino médio, eu já era a bichinha oficial da turma. Me chamavam pelo sobrenome, Santana, porque ele era bem mais feminino. Combinava mais com a bichinha.

Um dia a caminho do colégio a polícia me parou. Negra, né? Tudo tem sua primeira vez. Me revistaram e um deles falou, lembro bem, essa molecada agora tudo quer ser mulher, olha esse aí? Toda bichinha. E me liberaram. Não entendi nada, só fui pra aula. Aquela cena desencadeou um terror que me levou pra primeira crise depressiva da minha vida. Reprovei o ensino médio por causa dela, já que não conseguia ir pra aula. Bichinha. Na epoca, isso me lembrou o dia em que uma colega ainda lá na oitava série achou que eu queria dar pro galã da turma, que ela era afim, e disse pra eu me por no meu lugar porque ele iria ficar com ela e não com uma bichinha que queria ser mulher como eu. Não entendim Eu nunca disse que queria ser mulher. Eu nunca nem pensei sobre aquilo. Mas todo mundo me lembrava.

Na faculdade pensava que as coisas iriam mudar. Eu continuava feia, dentuça e afeminada, mas eu tinha barba! Muita barba. Toda falhada, mas barba. No meu segundo ano lá, conheci meu primeiro namorado. Ele me violentou depois do nosso primeiro beijo. E me violentou bem mais durante os dois anos seguintes. Tinha ódio, dizia, porque não aceitava estar gostando de uma mulherzinha feia como eu. Foram dois anos de violência doméstica, física, sexual e psicológica nas mãos dele sempre justificadas nesse tipo de fala. Ele, dizia, fazia tudo aquilo comigo porque havia pelo menos um homem — ele — na relação. Eu não entendia e não conseguia fugir. Nem quando ele me trancava em casa pra ir transar com outros, e ai de mim se reclamasse. Só acabamos quando consegui escapar no último segundo da sua tentativa final de me matar. Ainda sonho com aquela noite frequentemente.

A gente ouvia muito Portishead junto. Eu ainda me lembro de cantar olhando pra ele: give me a reason to love you. give me a reason to be… a woman.

Quando fugi de Eduardo, no caminho de volta para a casa dos meus pais, fracassada com três anos de academia jogados no lixo por causa de um relacionamento que me custou a saúde e do qual carrego sequelas até hoje, no meu fone de ouvido tocava Bird Ghurl, da Anohni. Eu ouvia aquele álbum há anos, mas foi a primeira vez que chorei copiosamente ao som dele. Não entendia o porquê. Mas eu chorava. Eu queria voar também. E foi o que pensei que estava fazendo, ao voltar pra casa de meus pais.

Mas foi um erro, eu acho. Ou não, quem sabe? Eles também me viam como um fracasso.

As feridas do relacionamento me transformaram em um pedaço de carne ambulante. Eu não ria. Eu não falava. Eu não cantava. Eu não sonhava. Só despertei no dia final, quando minha mãe me expulsou de casa após dizer que estava com vergonha de mim. Que ela fez tudo que pode, mas estava cansada de ter vergonha de mim. Não porque eu havia fracassado em tudo. Não porque eu havia me tornado um pedaço de carne ambulante. Mas sim porque, nas palavras dela, ela pariu um homem e nunca viu esse homem em mim. Eu não entendi. Na minha cabeça eu era um homem. Eu até tinha pau! Como não seria? Quando eu rebati, apanhei. E após apanhar fui jogada na rua.

Na minha vida sem família em São Paulo, vivia entre pessoas LGBT+. Ninguém me chamava no masculino. Eu era a amiga, mas aqui o tom era gostoso. Eu era a bicha, mas aqui o tom era gostoso. Quando eu me apresentava como homem, as outras bichas e as outras amigas riam. Homem? Só quando alguém me queria na cama — negros são máquinas, diziam, mas eu era conscientemente broxa. Não entendia. Não sei se queria mais entender também.

E essas são algumas das lembranças que ainda tenho, exemplos das que ainda restam. E as que restam são todas de alguém me lembrando, de um jeito ou de outro, que eu não sou gente ou homem.

Então um dia ey disse: é, não sou homem mesmo. E tudo mudou. Quase tudo.

Agora os amigos e amigas me diziam homem. A polícia me lembrava: negro e homem! E assim por diante.

Eu nunca entendi. Eu ainda não entendo. Hoje uma criança na padaria me chamou de tia. Ontem no bar, uma tia me chamou de criança e os homens agora me pedem em banheiros e mensagens por aí pedindo pra eu ser a negrinha deles — negras são máquinas, dizem.

Não entendo as caixinhas. Não sei quando me encaixei nelas e nem sei a razão desse texto. Nem tem talvez.

Mas hoje choreu porque queria me encaixar, si temo ser tarde demais. Não pra mim, mas pras caixinhas.

Não encontrei o motivo nas minhas memorias, pra quando me dizem que fui socializada como homem. Não encontrei motivos na memoria que justifiquem porque me faz tão bem dizer que sou travesti. Será que irei pro céu como as bird girls da Anohni? Será que é por isso que me sinto tão sozinha, até cercada de gente? Será por isso que ninguém me ama? É por isso que me sinto tão feia? Tão indesejada? É por isso que me sentia tão indesejado? Porque nenhuma caixinha me deixa dentro dela? Porque me tiram e colocam de uma a outra sem me falarem nada antes? Não sei. Tô meio cansada. Cansada das caixinhas.

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